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sábado, 16 de agosto de 2014

DISLEXIA E CIDADANIA

 
Davi é um bonito rapazinho, inteligente e talentoso. É um estudante do segundo grau de uma escola americana. Sempre recebeu prêmios nacionais por seus trabalhos em arte e foi o editor artístico do livro anual de sua escola. Joga basquete e toca guitarra com um grupo de sua cidade. Mas Davi tem um sério problema. Ele não consegue aprender a ler:

 - Conheço todos os ridículos sons; olho todas aquelas letras sobre a página e sei que outras pessoas podem combiná-las, formando palavras. Mas, para mim, aquelas letras não formam nenhum sentido...

José também é jovem, alto e bonito. Ele é extremamente introvertido, mas se comunica intensamente através de seu olhar penetrante e indagador. José tem habilidades com o computador, com os aparelhos eletrônicos, com trabalhos manuais em madeira e com a matemática em cálculos concretos, como no controle de contas bancárias, de porcentagem e juros. Sua linguagem verbal é clara e lógica e ele decodifica plenamente a linguagem receptiva. José tem boa orientação espacial e é excelente motorista.

Mas José também tem um sério problema de aprendizado. E, coincidentemente, utiliza-se de expressão semelhante àquela usada por Davi, para descrever suas dificuldades:

- Não consigo aprender lendo; é como se as palavras não tivessem sentido. Mas existe uma grande diferença entre Davi e José; um é americano e o outro é brasileiro.

Davi foi devidamente diagnosticado como disléxico e informado acerca de suas dificuldades e facilidades de aprendizado; recebeu assistência neuropsicopedagógica em seu aprendizado diferencial; foi respeitado como pessoa e valorizado em suas capacidades, com sua adaptação escolar sendo completada por um programa individualizado de aprendizado.

A escola de Davi também informou à sua família sobre os problemas de aprendizado dele.

Como resposta, Davi veio desenvolvendo um aprendizado compensatório, tendo-lhe sido proporcionada a possibilidade de integrar-se à escola e à sociedade, de vir desenvolvendo seu potencial e de compreender suas próprias dificuldades, além de poder ser compreendido, também, por sua família.

 José, porém, é vítima de outra condição: a desinformação da escola e da sociedade brasileiras, geradora do preconceito e da inadequação escolar e social.

O histórico de José é profundamente constrangedor para um país tão grandioso como o nosso, cuja estrutura social foi capaz de ter-lhe subtraído o sagrado direito à cidadania. Ele só tem deveres para com a sociedade, mas seus direitos não constam em nenhuma de nossas leis. Sequer existe a figura jurídica do disléxico.

José tem algumas dificuldades com a sua linguagem corporal, muita dificuldade com sua motricidade fina, invertendo letras e números, em sua acentuada dificuldade com a escrita manual. É muito mais fácil, para José, escrever com a máquina datilográfica ou com o computador.

Por suas dificuldades e porque foram ignoradas suas necessidades pedagógicas diferenciais, ele foi tratado, pela escola, como um proscrito: ridicularizado e ofendido com rótulos pejorativos, até por professores, que a ele assim se referiam mesmo em dias em que José estava ausente da sala de aula. Houve a permissividade, por omissão de atitude, que ele fosse ofendido verbal e até fisicamente por colegas, dois dos quais chegaram a rasgar seu tênis de couro, quando ele apenas tinha nove anos de idade. E quando sua mãe procurou o serviço de orientação psicopedagógica da escola para conversar sobre o ocorrido, foi obrigada a ouvir a seguinte advertência: “Por favor, a Senhora pare de vir até aqui reclamar. Dessa maneira, está criando um delinquente!”.

Outro sério problema associado à dislexia de José é sua hiperatividade. Porque ele não consegue permanecer sentado por muito tempo, por um impulso compulsivo de movimento, foi “convidado” a retirar-se de escolas particulares que frequentava.

Aos 18 anos de idade, José já esgotara sua opção de escola. E o chamado exame vestibular apresentou-se como um obstáculo intransponível, pela desinformação acerca do que é a dislexia e da correta relação dificuldades e habilidades de aprendizado da pessoa disléxica.

Décio, irmão de Fábio, sempre teve a aparência de um jovenzinho normal do final da década doa anos 70. Mas ele tinha uma dificuldade de aprendizado oculta que, àquela época, tomava um aspecto ainda mais misterioso e assustador, pela absoluta desinformação de sua realidade, em nossas escolas.

Décio trocava, omitia e invertia letras, às vezes sílabas, ao escrever. Porém era muito inteligente, ativo e dominava matemática facilmente. Tinha prazer em ler livros policiais ou de espionagem, uma memória de longo prazo muito boa e uma mente arguta lógica e lúcida. Sua dislexia poderia ser classificada como em nível médio-leve.

O pai de Décio era inflexível em exigir-lhe desempenho escolar-nota, expectativa a que ele não podia corresponder, já que a escola técnica que frequentava não considerava sua dislexia.

Paralelamente, essa escola técnica em que Décio era aluno de segundo grau também era inflexível na exigência de correção ortográfica, sendo frequentes as advertências e reprovações por causa de uma dificuldade que ele não tinha como superar sem assistência especializada. Procedimento com que a escola inviabiliza a permanência do aluno disléxico em sala de aula que, depois de reprovado repetidas vezes, passa a somar o coeficiente da chamada “evasão escolar”. Mas, na realidade, como afirmou o educador brasileiro Paulo Freire, “esses alunos não se evadem da escola; eles são impelidos a abandonar a escola”.

No caso de Décio, ele teve a sorte de, aos 17 anos, poder estudar em uma escola americana, onde lhe foi dada a chance de desenvolver seu potencial. A oportunidade que lhe foi subtraída pela escola brasileira através da reprovação repetida foi-lhe concedida em escola americana, onde ele foi compreendido em sua incapacidade de escrever corretamente e valorizadas suas incontestes habilidades. Décio foi avaliado e recebeu aprovação que lhe permitiu concluir rapidamente o segundo grau.

Ao despedirmo-nos dele, quando de volta com Fábio para o Brasil, estabelecemos o seguinte diálogo:

-Décio, por suas habilidades, estou segura de que se você escolher engenharia mecânica ou a área de informática para concluir seus estudos irá sair-se muito bem. -

 Quem..., e...e...eu? ...mãe?! - Sim, você, Décio. Porque você é muito inteligente, tem um excelente nível de conhecimento, é muito bom em matemática, hábil em compreender o mecanismo de máquinas em consertá-las. E tem um acurado senso lógico e de discriminação e memória associativa, qualidades importantes no desempenho desse tipo de trabalho.

Passados alguns anos, Décio mencionava em nossa conversa: ”Mãe, você lembra aquela conversa que tivemos, quando você voltou para o Brasil? Ela foi decisiva em minha vida”.

 Hoje Décio tem 39 anos, é cidadão americano, formou-se em Informática, é casado com uma americana, tem quatro filhos e trabalha para uma empresa em São Francisco (CA), tendo trabalhado em sua matriz no Japão, como também em sucursal da Europa. Também já esteve no Brasil, quando veio instalar um sistema de informática voltado ao Mercosul. O presidente de sua companhia chegou a cruzar os Estados Unidos de costa a costa, especialmente para conhecê-lo e homenageá-lo. Porque, afirmou, “Décio se fez herói” ao ter criado um programa de informática que trouxe milhões de dólares de lucro para a sua empresa. Programa usado em diversas cidades americanas em que a companhia tem filiais.

 Fábio não teve a mesma sorte de seu irmão Décio. Ele morou nos USA durante 18 meses, depois do que voltamos ao Brasil, pelas complicações com sua saúde e por toda uma circunstância daquele momento. Também porque há implicações difíceis de serem equacionadas quando se é estrangeiro em um país de Primeiro Mundo. Como, por exemplo, pela sensação de desconforto quando não nos sentimos coparticipantes do processo dinâmico da nação o pela falta prática da necessária assistência através de um programa de saúde.

Mas nada é pior do que ser brasileiro, morar em seu próprio país e ser disléxico. Porque essa condição pode levar a perdas irreparáveis culminando em uma total impotência frente às leis de seu próprio país, que não dispõe de estrutura para garantir-lhe direitos sociais básicos. E, assim, acaba por solapar seu direito à própria cidadania.

Foi o pior erro para a vida de Fábio termos voltado dos Estados Unidos. Mas também voltamos porque desconhecíamos, àquela época, o que era dislexia e quais as implicações que envolviam ser disléxico no Brasil.

Porém, a permanência de Fábio nos USA foi importante pelo reforço psicológico que ele recebeu em sua escola americana e que lhe deu suporte no enfrentamento da luta desigual a que foi submetido em seu próprio país.

Desse apoio decisivo que Fábio recebeu na América, destacam-se dois fatos: o primeiro foi canalizado pela atitude humana e profissional de sua professora americana, Mrs. Sara, que potencializou a força de sua influência com a intervenção abaixo descrita.

Em vésperas de Fábio voltar ao Brasil Mrs. Sara sentou-se a seu lado e passou a dizer-lhe o seguinte:

- Você está voltando para o Brasil. Lá, a escola não vai entender o seu problema. Por isso, muitas vezes vão dizer coisas horríveis a seu respeito. Vão dizer que você é “preguiçoso”, “estúpido” ou “retardado”. É importante que você saiba que não é nada disso que podem falar de você; que todas essas coisas horríveis que possam dizer a seu respeito, por causa de suas dificuldades de aprendizado, não são verdadeiras. É muito importante que você saiba o que agora vou lhe dizer e que guarde tudo muito bem em sua memória, porque vai precisar lembrar-se disso muitas vezes em sua vida: você é um bom menino e muito inteligente, mas porque você é disléxico, vai precisar, sempre, de um tempo mais longo do que outras crianças precisam para aprender. Mas como você é determinado e tem uma excelente memória longa, sejam quais forem as suas dificuldades, você vai vencer.

Mrs. Sara sabia o que estava falando. Porém, jamais poderia imaginar que Fábio acabaria por ser expulso de sua escola brasileira por ser disléxico.

O segundo fato, decisivamente positivo na estruturação do amadurecimento psicológico de Fábio, foi a atuação do psicólogo escolar americano, em sua emocionante postura humana, ao transmitir-lhe as conclusões diagnósticas referentes às suas dificuldades de aprendizado. Experiência vívida e tocante, descrita anteriormente em seus detalhes.



Extraído do Livro: Dislexia. Você sabe o que é? Inteligente... Mas aprende diferente! De autoria de Zeneida Bittencourt Luczynski.
http://www.associacaoinspirare.com.br/pt/site_extras_detalhes.asp?id_tb_extras=5115

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